O que nossas “músicas da vez” dizem sobre nós

ATENÇÃO: sim, eu divago no texto, mas é para apresentar o meu ponto da forma que eu acho melhor. Não venha reclamar depois que eu não vou responder de forma educada (ou me dar ao trabalho de responder)

Você já parou para pensar o quanto as músicas de que mais gostamos podem dizer muito sobre nós? Podem dizer sobre quem somos, sobre a fase da vida em que nos encontramos, sobre nosso estado emocional (especialmente quando não conseguimos contar para ninguém exatamente como nos sentimos porque não encontramos as palavras certas). E, por mais que tenhamos músicas preferidas, as que mais ouvimos (ou precisamos ouvir) mudam com o tempo. Claro, sempre vai haver aquela música ou aquela banda ou enfim que tem um canto especial reservado só para ela. Mas isso não significa que sempre nos identificamos com ela, só que ela significa algo para nós, que ela nos encantou de alguma forma maior que as demais.

E, mesmo assim, nem sempre queremos ouvi-la.

Mas de onde veio essa filosofia toda sobre músicas de repente?

Pura e simplesmente porque ultimamente eu tenho escutado a mesma música em loop. E não foi a primeira vez. Mais do que isso, eu percebi que ela segue o mesmo tema que a música que eu estava ouvindo em loop alguns meses atrás. E, apesar de eu muitas vezes deixar a minha lista do Spotify no aleatório e só ir trocando de música quando não quiser ouvir determinada coisa, muitas vezes têm sido as mesmas músicas que me fizeram pensar “eu quero muito ouvir isso hoje” ou “eu me identifico tanto com essa letra”.

Nos últimos meses (não apenas, mas com uma frequência maior), eu tenho me perguntado o que eu quero fazer da minha vida. A faculdade está acabando, ao menos em teoria, mas eu não consigo focar no último passo: meu TCC. Não que o tema não me interesse ou porque eu o acho irrelevante. A verdade é exatamente o oposto. Então eu não conseguia entender o motivo de eu não conseguir olhar para o meu TCC e sentir vontade de investir nele.

A resposta é, para ser bem sincera, muito simples.

O problema não é o TCC, é o que ele carrega e o que ele representa. Ele representa a conquista de um diploma que eu não faço questão de ter. Ele carrega um peso de responsabilidade que se sobrepõe à importância do tema e do aprendizado. Mas, mais que isso, ele é posto como a maior obrigatoriedade acadêmica. Ninguém se importa se você gosta do tema, se você quer fazer aquilo daquela forma, se o tema é importante. Se você seguir o manual, eles não pedem mais nada. É o maior de todos os “faça por fazer”. Sim, eu entendo a importância do TCC, não é isso que eu estou questionando. Eu estou questionando a forma como ele é tratado. Não importa tudo o mais que você possa ter aprendido na faculdade. Não importa quão feliz essa última tarefa te faça ou deixe de fazer.

Se você não for capaz de fazer, seu valor como pessoa socialmente falando cai drasticamente.

Então eu estou, no âmbito acadêmico, basicamente fazendo um trabalho que, apesar de ter tudo para me motivar, me deixa com vontade de jogar tudo para o alto. Mas não é apenas isso

As coisas acumulam.

Além da obrigação de terminar a faculdade, há sobre pessoas da minha geração uma pressão social enorme para conseguir conquistar tudo que nossos pais conquistaram e sermos melhores. Afinal, eles investiram pesadamente em nós e, no tempo deles, com menos escolaridade e facilidades, eles já tinham casa e emprego na nossa idade. O problema é que todo o contexto que os envolvia (social, econômico e político) era outro. Por mais que nos matemos de estudar, ter apenas um diploma não basta. A menos que você tenha uma série interminável de cursos e estágios (em geral não remunerados ou mal pagos), sua qualificação parece nunca ser o bastante. Se você não sabe inglês, suas chances caem drasticamente de conseguir qualquer coisa. Mesmo as vagas mais simples, cujas exigências deveriam ser bem menores, hoje têm requisitos absurdos e incompatíveis.

Exige-se daquele que entra no mercado de trabalho o mesmo nível de habilidade e capacidade daquele que já está no mercado. Esquece-se que essa experiência toda vem com o tempo e com as oportunidades de aprender. Talvez nós não estejamos tão preparados quanto devêssemos para o mercado de trabalho. Mas o mercado de trabalho também não está preparado para nós. Nós somos pessoas recém formadas ou a ponto de nos formarmos. Não adianta exigirem que tenhamos uma experiência que é incompatível com o que nos é oferecido.

Mesmo assim, um discurso recorrente nas famílias com pessoas da minha geração é o “na sua idade, eu já tinha saído da casa dos meus pais e conseguia me sustentar”.

Quantas pessoas você conhece que estão nessa situação? Que fazem/fizeram uma faculdade que odeiam e que têm pais que parecem incapazes de compreender que o mundo mudou?

Sim, eu sei, eles têm as melhores das intenções para nós. Mas isso não basta. Não mais.

Ta, mas o que isso tudo tem a ver com músicas?

Naturalmente, nada faz sentido ainda. Não é para fazer. A ideia não está pronta. Você vai ter que me aguentar filosofando e explicando mais um pouco. Ou você pode pular para o final do texto, quem sou eu para impedir? Mas eu acho que vai ser perda sua, porque essa é uma discussão importante em sua totalidade. Por isso, vamos continuar.

Com todas essas expectativas, com toda essa insatisfação, quantas pessoas vocês conhecem que conseguem se dar lindamente bem com os pais? A decepção dos pais para com os filhos costuma ser algo constante e sufocante. Mas não são apenas essas as expectativas que nós temos de atingir.

Nós temos que ser capazes de manter nossa saúde física e mental em dia, mesmo que tenhamos poucas horas disponíveis para isso. Você come de forma saudável? Você pratica exercícios? Seus exames estão em dia? Você tem dormido o bastante? Acredite, se você estiver levemente fora do padrão, alguém na sua família vai ver isso como o fim do mundo e, eventualmente, isso vai cair no seu colo. Dos meus amigos mais próximos (e mesmo na esfera de conhecidos), a maioria sofre com os pais repetindo incansavelmente que eles estão gordos/deviam emagrecer, que eles não estão comendo bem o bastante (mas nada de abusar! Sabe aquele sorvetinho que você queria? Esquece. Sabe quantas calorias aquilo tem? É), que eles não praticam atividade o bastante. Mas não se esqueça de fazer as lições da faculdade, de passar nas provas (você quer um mestrado? Se sua ponderada não for PELO MENOS 7, esquece. Cresci ouvindo que os professores nem olham seu currículo ou qualificações se você não for capaz de manter um 7 na faculdade), de conseguir um estágio e, quando for o tempo, procurar/garantir um emprego.

Também não esqueça de cuidar da sua aparência, porque ninguém gosta de gente relaxada e a primeira impressão, desde a entrevista, é muito importante. Nada de jeans e camiseta. Onde já se viu trabalhar de jeans e camiseta?

E não desista da faculdade. Onde já se viu desistir da faculdade? Como assim você odeia o seu curso, deixa de falar bobagem. E como assim você acha que vai enlouquecer por causa das aulas? Você só estuda, deixa disso.

Tudo isso são coisas que eu cresci ouvindo dos meus pais e de parentes em geral (em graus diferentes, mas ainda assim).

Soa familiar?

E onde isso me deixa? O que isso tudo significa para mim? Como eu consigo manejar tudo isso? Como, afinal, sobreviver?

Um ponto importante aqui é a socialização. Não se isole. Por mais que as pessoas te cansem, talvez o problema não seja estar com pessoas, mas o tipo de pessoa com que você está. Cerque-se de pessoas que te entendam e que te apoiem, mas que também saibam quando por limites. Enfrentar tudo sozinho é muito difícil.

Faça uma coisa de cada vez e lembre-se de respirar. Tente não por mais pressão sobre você mesmo. Já tem gente demais fazendo isso, não acha?

Mas, tão importante quanto tudo isso, é achar formas de se expressar. De conseguir identificar como você se sente e não se sentir tão sozinho nessa situação toda. De se motivar a continuar. E é aqui que as mais diferentes formas de expressão artística entram. Filmes, séries, pinturas, músicas, poemas, livros, fotografias, o que você quiser.

A arte nos permite expor nossos sentimentos e pensamentos de forma mais livre e nos comunicarmos uns com os outros de forma muito mais ampla. Ela nos permite saber que alguém, em algum lugar, conseguiu expressar aquilo que sentimos e teve a coragem de se expor ao mundo. Ela nos permite pegar palavras e imagens emprestadas para melhor nos expressarmos. Quantas vezes não recomendamos filmes, séries, livros e músicas aos nossos amigos/conhecidos/colegas/parentes/etc? Quantas vezes a recomendação não quer dizer alguma coisa?

E, no momento em que eu estou na minha vida, músicas têm sido uma forma de comunicação e união extremamente eficiente. Têm sido uma forma de reflexão e conforto. Quem não gosta de ouvir uma música? Mais ainda, quem não gosta de ouvir uma música que, de alguma forma, mexa conosco? Seja para relaxarmos, seja para nos expressarmos, seja para o que for. A música tem um poder só dela de nos afetar, assim como qualquer expressão artística.

A diferença é que, muitas vezes, uma música é muito mais acessível. Talvez até menos trabalhosa (não na produção, mas na “utilização”. Você liga a caixa de som/põe o fone e só… Deixa rolar. Não precisa de muita coisa).

E as de que eu mais tenho precisado nesse momento tão cheio de pressões e expectativas na minha vida falam justamente da insatisfação com a vida que se tem, da vontade de sair e descobrir novos horizontes, da resiliência e resistência diante de tudo isso, de se conhecer. Falam de como as coisas mudam, de como nós mudamos e, com isso, as nossas necessidades. Nós precisamos nos dar asas para voar. Nós precisamos aguentar e levantar toda vez que nos derrubam. Nós precisamos passar pelo nosso próprio caminho do autoconhecimento. Mas, mais do que tudo, nós precisamos saber que não estamos sozinhos nessa situação e que, no fim, nós vamos conseguir.

Se vocês quiserem saber o que eu ando ouvindo, fica a lista (e sim, eu amei “Moana” e a trilha sonora):

  • How far I’ll go (Auli’i Cravalho), do filme “Moana”
  • Know who you are (Auli’i Cravalho), do filme “Moana”
  • I am Moana (Auli’i Cravalho&Rachel House), do filme “Moana”
  • Defying Gravity (Idina Menzel), da peça “Wicked” (eu nunca vi, só ouvi a música mesmo)
  • I’m still standing (Taron Egerton), do filme “Sing” (eu nunca vi, só ouvi a música mesmo. E sim, eu sei que a música original é do Elton John, mas eu gosto muito mais da versão do filme)
  • It’s not right for you (The Script)
  • Superheroes (The Script)

Se vocês prestarem atenção nas letras, vão perceber que elas se encaixam em muitos contextos, não apenas esse momento de autoconhecimento e decepção generalizada por não termos realizado nossos sonhos ainda. Mas essa é uma das belezas da música, ela é eterna e atemporal. Mesmo que ela não se encaixe em uma determinada época, em alguns anos (algumas décadas, talvez), ela pode voltar a fazer todo sentido.

No final, o que importa é que nós ainda estamos de pé, que um dia saberemos quão longe podemos ir. Algumas coisas nós não podemos mudar, mas só vamos saber quando tentarmos, não é? Não seguir nossos sonhos nos mata por dentro, mas nós estamos nos esforçando para fazer as coisas certas e é assim que super-herois aprendem a voar.

Kissu,

Kuma

P.S.: a intenção, originalmente, era fazer um texto mais focado nas músicas e suas mensagens, mas, enquanto escrevia, achei que seria melhor contextualizar mais e acabou saindo assim. Não  me incomoda, porque eu acredito que assim ficou mais sincero e mais pessoas podem entender a ideia. Eu também acredito que, quando escrevemos, as palavras se tornam um tanto independente de nós e guiam o texto para onde ele precisa ir. Nós apenas fornecemos a ideia principal. No caso, como ouvirmos certas músicas pode refletir o contexto em que estamos inseridos.

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É relacionamento abusivo quando…

Surgiu, já tem algum tempo (mas eu não consegui escrever antes por uma série de motivos), uma hashtag no Twitter (e logo passou para o Facebook, como sempre acontece) que me chamou bastante a atenção. Ela foi criada para chamar a atenção para os relacionamentos abusivos e suas nuances, porque nem sempre um relacionamento abusivo vai ser óbvio, vai ser físico em sua violência. Ele começa na violência psicológica e pode ou não passar para a violência física. Ambos são danosos, em graus e de jeitos diferentes, e difíceis de abandonar por causa da dinâmica em que funcionam. A vítima, mesmo quando percebe que está em um relacionamento abusivo, não consegue deixar seu abusador por ser dependente dele, seja de forma psicológica, financeira, emocional, o que for.

A hashtag em questão, que me levou a escrever esse texto, foi a “é relacionamento abusivo quando”, mas ela não é a única. Houve também a circulação, com o mesmo propósito, da hashtag “ele não te bate”. Uma pesquisa rápida no Facebook por qualquer uma dessas hashtags logo gera vários e vários resultados. E, dessa vez, eu decidi escrever a respeito não apenas para informar as pessoas sobre esse assunto, mas porque para mim é algo extremamente pessoal. Estar aqui, agora, escrevendo esse texto me é revisitar antigas feridas, nem todas cicatrizadas ainda, e cutucá-las, abri-las. É me expor de tal maneira que, ao fim, me sobrará recolher as peças que ficarem.

Mas eu já as recolhi uma vez e sei que posso recolher de novo. O processo não é mais fácil a cada vez que você o repete. Não. Você que fica mais forte a cada vez que encara esse demônio que é o relacionamento abusivo e o derrota. Aos pouquinhos, no seu próprio ritmo, dando tempo para seu corpo e mente se restaurarem após cada batalha. A cada nova coisa que você identifica em um relacionamento, presente ou passado, que indica abuso, você precisa decidir o que fazer. Porque aquilo vai te afetar. Não vou mentir. Todas as marcas que carrego comigo ainda me afetam. Mas eu posso escolher deixar que elas me afundem ou não.

Há um “porém” nessa história. Você só consegue tomar essa decisão quando tem consciência de que o relacionamento que você vive ou viveu pode ser abusivo. Você só consegue tomar essa decisão quando sabe o que caracteriza um relacionamento abusivo. Claro, cada relacionamento é diferente do outro e há certas coisas que podem nunca acontecer com você. Mas existem coisas, sinais, que são frequentes. Mesmo que você ainda não tenha forças para enfrentar a dor de um relacionamento abusivo, o importante é que você saiba reconhecer que aquilo te faz mal e procurar pessoas que realmente se importam com você para te ajudarem. Porque, acredite, é muito difícil sair de um relacionamento assim sozinha, sem ninguém para segurar a sua mão e dizer que você está fazendo a coisa certa.

Acredite, se não houver ninguém para te puxar para fora desse ciclo, seu abusador vai apenas te puxar mais e mais para dentro, para fundo, te fazendo acreditar que terminar o relacionamento é errado e egoísta. Ele vai usar de todas as táticas que tiver para fazer com que você mude de ideia. Para te fazer ficar. Porque é nisso que ele sente prazer. É isso que ele quer. Uma vítima fraca e indefesa, dependente dele e isolada do mundo, sem mais ninguém para ajudar. Alguém para ser dele e só dele.

Mas, afinal, o que caracteriza um relacionamento abusivo? Bom, é um relacionamento abusivo quando (preparem-se para a lista, completamente baseada em fatos reais, em experiências pessoais, em experiências contadas quando as hashtags surgiram):

… Ele só fala com você quando acha que você merece (o famoso “tratamento de silêncio” ou “tratamento silencioso”);

… Ele não quer saber como você está ou como foi seu dia, porque as únicas vitórias, frustrações ou o que for, que importam são as dele;

… Ele acha que seu mau humor só pode ser explicado por TPM. Se não for isso, você precisa ver bem o tom que usa com ele, porque ele não vai aturar tamanho “desaforo”;

… Ele repete aquela piada que te incomodou o dia todo até te deixar completamente constrangida. Se for relacionada ao seu corpo, você vai terminar completamente consciente de cada defeito, por menor que seja;

… Ele não suporta a ideia de você ter amigos homens. Abraçá-los, então, esqueça!

… Ele exige ver o seu telefone para saber com quem você está falando quando estão juntos. Afinal, ele está com você, quem mais poderia importar?

… Ele não respeita o seu tempo para se sentir à vontade para fazer certas coisas, incluindo (mas não limitado a) as de cunho sexual;

… Ele vai diminuindo sua autoestima lentamente até você se sentir a pior pessoa do mundo;

… Ele acha que você deveria agradecer por ele não te bater;

… Ele, de tanto te colocar defeitos, faz você acreditar que os tem e que não é capaz de viver algo melhor na vida;

… Ele te lembra todo dia que a casa é dele, o dinheiro é dele, a família é dele e que você não tem e nunca será nada na vida sem ele (quando vocês moram juntos ou você vai visitá-lo, especialmente se você for para a casa dele mais do que ele vai a sua);

… Ele repete todo dia que só ele no mundo te ama de verdade e que os outros homens só te veem como objeto sexual, que você só terá amor de verdade com ele;

… Ele vasculha sua bolsa e celular, só depois te dá boa noite, pois precisa verificar se você “se comportou” na rua;

… Ele escolhe suas roupas e regula suas amizades;

… Ele diz coisas como ” você não chegará a lugar nenhum pois é burra, nem terminou a faculdade”, ” eu estou com você porque foi conveniente, mas não há nenhum motivo especial, pois você nem é gata demais e nem mesmo rica”, ” eu teria qualquer mulher mais bonita que você se eu quisesse”;

… Ele critica as coisas de que você gosta ou que tem vontade de fazer, como se só aquilo que ele aprova fosse bom o bastante (não para você, mas para ele, que está acompanhado de você);

… Ele reclama que você não se esforça o bastante no relacionamento e que ele faz tudo pelos dois (quando você sente que está se matando para fazer tudo dar certo);

… Ele vem cheio de dengo quando você fica brava com algo que ele fez para te acalmar, mas não se importa com suas tentativas de remediar a situação quando os papeis se invertem;

… Ele concorda que talvez precise de ajuda psicológica, mas, quando não ouve exatamente o que quer do psicólogo, diz que a pessoa que não sabe o que faz e que a culpa não é dele, porque ele tentou (e você que tem que aguentar tudo, o que pode incluir um sermão sobre como foi uma péssima ideia a sua de sugerir que ele fosse atrás de ajuda profissional para começo de conversa);

… Ele chora dizendo que te ama e que quer te dar uma vida melhor, mas não aceita um único emprego que não seja digno o bastante dele nem aceita que você trabalhe com o que ele não achar digno o bastante;

… Ele diz que não se incomoda se você ganhar um salário maior que ele, mas torce o nariz toda vez que você diz que tem dinheiro para algo que ele não pode pagar (sem que ele tenha “pedido” que você pagasse);

… Ele julga seus amigos quando vocês estão sozinhos, mas se faz de santo na presença dos outros. Porque aí, quando você se afastar de todos os outros, a culpa “não vai ser dele” (mesmo que ele tenha enfiado todas as minhocas na sua cabeça);

… Ele, sempre que fala da ex-namorada, usa termos como “louca” ou “descontrolada” e se recusa a te deixar falar com ela (especialmente quando você não tem outra forma de conseguir contatar a pessoa);

… Ele fica comparando experiências sexuais passadas com a que tem com você como uma forma de dizer que você “não é boa o bastante, mas ele te ama mesmo assim”;

… Ele só transa com você quando ele quer (o que, em geral, exclui todos os dias em que você está menstruada, porque “eca, sangue”) e, se você não estiver com vontade (ou precisar de um pouco mais de estímulo do que ele estiver com vontade de dar), tem alguma coisa de errada com você;

… Ele exige (muitas vezes indiretamente) que você raspe todos os pelos, especialmente pubianos, provavelmente com algum argumento simplório dito de forma convincente. E não se importa de fato se isso te incomoda ou não;

… Ele quer saber o que você está fazendo o tempo todo, a toda hora do dia, e reclama se você não responde na hora, já vindo com mil questionamentos (e você normalmente se sente como se estivesse sendo interrogada pela polícia como suspeita de um crime);

… Ele zomba de todo pequeno erro que você comete, mas não suporta que você diga (mesmo com o tom mais considerativo de todos) quando e onde ele errou;

… Ele fica insinuando o tempo todo que aquele cara (mesmo que seja um professor super gente fina, alegre no casamento e com dois filhos) com certeza está dando em cima de você. Mesmo dizendo em tom de brincadeira, ele dá um jeito de te deixar desconfortável com a situação, que é para ter certeza de que você entendeu a mensagem (“o homem da sua vida sou eu” e similares);

… Ele não suporta se você falar de outros homens (mesmo que a sua relação com eles seja meramente profissional), especialmente várias vezes seguidas, mesmo que você esteja desenvolvendo um projeto a semana toda com aquele cara em específico (em geral, você acaba falando em resposta a perguntas como “fez o que hoje?”, “como foi seu dia?”, “como foi o trabalho?” e similares).

A lista pode continuar indefinidamente. O resumo básico é que ele vai dar um jeito de diminuir sua autoestima e seu amor próprio, ele vai tentar (muitas vezes conseguir) te afastar de parentes e amigos, vai fazer com que você duvide de seus conhecimentos e capacidades (mesmo que você saiba do que está falando e não se sinta tão insegura de discutir o assunto com outras pessoas como se sente quando está discutindo com ele). Ele vai fazer com que seu mundo se resuma a ele. Que as vontades dele sejam as suas. Que você faça toda e qualquer coisa no dia pensando nele, de um jeito ou de outro.

Amiga, se você suspeitar que pode estar em um relacionamento abusivo, procure alguém de sua confiança e converse. Mas, conselho baseado em experiência própria, não fale apenas com uma pessoa, especialmente se ela já tiver certo histórico de puxar a sardinha para o lado do cara. Fale com duas, três. Conte o que você está passando, o que você acha que pode ser marca de relacionamento abusivo. Muitas vezes alguém de fora consegue ver mais facilmente o que se passa, especialmente se você expõe o relacionamento. Não o deixe te fazer acreditar que você é louca, que ninguém mais vai te amar.

Você não está, muito menos é, louca. E um amor como esse ninguém merece. Acredite, você vai achar quem te ame. Mais do que isso, amores românticos nem sempre são aquilo que almejamos na vida (apesar de sermos socialmente construídos para acreditar que, sem isso, somos incompletos). A sua felicidade mora dentro de você. Algumas pessoas te ajudam a encontrar esse jardim lindo escondido aí no meio e a regá-lo para que as flores cresçam bonitas e vistosas. Algumas pessoas, por outro lado, tampam a luz, cortam as flores, tentam fazer seu jardim sumir. Porque, se você não tiver o seu, você vai querer ficar com eles para poder desfrutar da beleza (muitas vezes superestimada) do jardim deles.

Toda força a nós, guerreiras nessa sociedade que nos cerca e nos ataca desde que nascemos. Toda força a nós, sobreviventes de relacionamentos abusivos. No mundo ideal, ninguém passaria por esse tipo de experiência. Mas o mundo não é ideal e muitas de nós passamos (presente e passado) ou vamos passar por isso. Toda força a nós, que, juntas, conseguiremos nos ajudar cada vez mais.

Toda força a nós, mulheres.

Kissu,

Kuma

P.S.: para quem quiser algumas leituras a mais, jogue no Google “dinâmica de relacionamentos abusivos”, por exemplo. Veja quantos resultados aparecem. Essas coisas nunca são casos isolados. Só querem nos fazer acreditar que sim.

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Por Orlando. E por todos nós.

Eu não ia escrever nada sobre o dia dos namorados. Não ia mesmo. Nunca foi uma data que eu tenha super comemorado ou pensado muito a respeito. No fundamental parecia uma coisa muito grande e importante, mas isso foi sumindo com os anos. Então, quando eu comecei a namorar no começo da faculdade, meu namorado (atualmente ex) nunca foi de ligar muito para datas, então nunca fazíamos nada muito especial também. Tudo bem que era um relacionamento à distância, então nos vermos já era o bastante, mas isso não vem ao caso.

O que me fez mudar de ideia foi a tragédia em Orlando. Eu ainda não consegui digerir o que aconteceu. Mais de 100 vítimas porque uma única pessoa (que não estava, nunca esteve, sozinha nessa categoria, mas estava sozinha no ataque) decidiu que tinha o direito de entrar armado na boate e sair atirando. Decidiu que seu preconceito era base o bastante para acabar com a vida de dezenas de pessoas. E ferir outras tantas dezenas.

Seu preconceito era o bastante para matar.

Já pararam para pensar quão perigoso é isso? E ele não é o único. E os Estados Unidos não sofrem sozinhos com esse tipo de gente. Na nossa própria casa podemos ver isso. Com gays, com transexuais, com todas as minorias. Apesar de eu não fazer parte do grupo LGBT+ (desculpa, gente, não sei a sigla completa com todos os grupos que foram sendo adicionados, por isso optei pelo “+”), essa é uma luta que, de certa forma, também é minha. E, mesmo que não fosse, sempre terá o meu apoio.

Como eu posso dizer que sou a favor da igualdade de gêneros sem respeitar o gêneros das outras pessoas?

Como eu posso dizer que sou a favor de qualquer orientação sexual sem respeitar a orientação das outras pessoas?

Como posso dizer que desejo a liberdade das mulheres sem englobar todas as mulheres?

Se uma mulher trans não é respeitada por ser trans, então a luta pelas mulheres continua.

Se uma mulher homossexual não é respeitada por ser homossexual, então a luta pelas mulheres continua.

Eu poderia continuar listando, mas acho que deu para pegar a ideia. Mas, mais do que isso, o feminismo (pasmem!) engloba também os homens. A seu próprio jeito e não como protagonistas, não me entendam errado. Mas engloba os homens por vários motivos e faz cada vez mais sentido quanto mais se pensa a respeito. Fica cada vez mais claro quanto mais se entende sobre isso.

Uma das coisas é culpar a vítima de estupro pelo ocorrido (e tratemos aqui da maioria das situações, ou seja, mulher como vítima e homem como abusador). Primeiro, estupro é sobre poder. É sobre subjugar a outra pessoa, sobre dominá-la. O machismo nos diz que homem que é homem manda, é forte, domina. Mulher que é mulher, por outro lado, é submissa, aguenta sem reclamar, é fraca. Com isso, uma das possibilidades que se tem para “justificar” (aspas porque esse ato abominável é injustificável) é quando a mulher não se encaixa nesse padrão (porque ela tem a liberdade de fazer o que quiser, usar o que quiser, porque ela é “mandona” – termo dificilmente usado para se referir a homens quando eles exigem algo ou falam com mais firmeza, estranho, né? –, etc , etc, etc), sendo outra possibilidade justamente porque ela se encaixa nesse padrão. No primeiro caso, ela estaria “pedindo por isso”, ela “mereceu” ser punida. No segundo, ela não pode reclamar porque, afinal, o papel dela é agradar ao homem e fim de papo. Em ambos os casos, a mulher é vista como posse.

Por que essa ideia toda prejudica os homens? Porque molda uma imagem de como o homem deve ser. Dominador, forte, quem dita as ordens. Mas também porque gera a ideia de que homem é um animal incapaz de se controlar. Porque, se o homem não fizer isso, não dominar, não subjugar a mulher, ele não é “homem de verdade”. E aí isso pode gerar sérios problemas para todos aqueles que não se encaixam nesse “padrão” (sério, quantas pessoas se encaixam nesse padrão? Quantas não sofreram para poderem se encaixar?)

Uma segunda coisa em que o feminismo engloba os homens é a questão do ser afeminado (o que de certa forma meio que se encaixa na parte anterior, mas também exige uma parte só para isso porque, bem, porque às vezes você só não é o grande macho alfa, mas não é “afeminado”). Ser afeminado é ter qualquer traço que é, socialmente, atribuído ao “ser mulher”. Se preocupar com a aparência? Afeminado. Cuidar da aparência (porque você pode se preocupar, mas se esforçar para não ficar cuidando)? Afeminado. Dividir as tarefas domésticas? Afeminado. Ter interesse por bonecas? Afeminado. Dividir o cuidado dos filhos? Afeminado. E assim vai. Às vezes as pessoas não usam a palavra “afeminado” especificamente, mas, de algum jeito, atribuem a característica ou o ato à mulher. E, claro, nada disso pode fazer parte do “ser homem”. Afinal, onde já se viu, não é? Quantas pessoas não acabam, de algum jeito, em algum nível, se reprimindo por causa de tudo isso? Quantas coisas as pessoas deixam de fazer por causa disso?

Outros dois pontos extremamente importantes são a questão do ser trans (afinal, todo mundo sabe que pênis = homem, vagina = mulher. Imagina querer mudar as “leis da natureza?”) e a questão do ser homossexual (afinal, Deus fez Adão e Eva, não Adão e Ivo, que ideia). E isso nos traz ao que iniciou todo esse texto. As pessoas veem (tem acento ainda?) essas duas coisas, mais do que as outras, como grandes abominações. Mais que isso, elas automaticamente te classificam como “gay” se você, como homem, não for o grande macho alfa ou, ao menos, não se mantiver o mais longe possível de tudo que possa ser “afeminado”. Por tabela, você automaticamente é visto como inferior, como uma vida que vale menos.

Ser parte do grupo LGBT+ é automaticamente assumir, consciente ou inconscientemente, mais riscos do que qualquer pessoa fora desse grupo (mas não vou entrar na questão racial aqui, porque todo mundo sabe que ser negro piora tudo. Mas eu nunca fui atrás de estatísticas para saber se um homem negro cis tem mais chances de morrer que um home branco gay, por exemplo. Ou qualquer outra comparação que envolva todas as variáveis). Quando amar devia significar ser livre para andar na rua de mãos dadas, ser livre para abraçar a outra pessoa, para tornar o relacionamento público, pessoas do grupo LGBT+ automaticamente se veem excluídas dessa liberdade.

Você não pode andar na rua.

Você não pode ir para lugares inclusivos (boates gay, por exemplo).

Você não pode assumir a pessoa que você é, porque em qualquer esquina pode ter uma pessoa que se acha no direito de tirar a sua vida por causa disso. Porque a qualquer momento pode aparecer alguém armado querendo atirar na sua cabeça só por isso. Porque, quando essas pessoas se juntam, o nível de barbárie chega a ser imensurável.

E aí, como se toda essa violência não bastasse, ainda vão lhe maldizer depois. “A família deve estar aliviada, imagina ter um filho assim”. “Eles foram ajudar? Deviam tacar fogo”. “Promovendo toda essa libertinagem, merecia mesmo”. Como se não bastasse a violência física, pessoas do grupo LGBT+ arcam com uma violência psicológica extremamente pesada. E, quanto mais as minorias a que você pertence se somarem, pior essa violência se torna. Eu não estou aqui para comparar o sofrimento de ninguém com o de ninguém, mas é inegável que alguns grupos sofrem mais que outros.

Eu não vou ser expulsa de casa por ser mulher. Mas poderia ser expulsa de casa por ser trans.

Eu não vou ser estuprada por ser heterossexual. Mas poderia ser estuprada por ser homossexual (“estupro corretivo”, quem já ouviu falar?).

Eu não vou ser chamada de macaca ou ter uma banana jogada em mim por ser branca (não caucasiana, são conceitos um tanto diferentes). Mas poderia por ser negra.

(os exemplos acima são apenas isso, exemplos. Antes que venham chiar na minha orelha porque eu não sou nada do descrito na segunda parte de cada frase, vocês foram avisados)

Antes que isso se estenda muito, acho melhor parar por aqui. A minha reflexão era sobre a questão LGBT+ e como isso afeta a mim, como feminista, e a todo mundo no sentido de fazer parte do conjunto de coisas que “não podemos ser” por causa do conservadorismo que ainda permeia nossa sociedade. Que matam pessoas todos os dias. Que fazem com que outras tantas se achem no direito de diminuir, de subjugar, de matar uma pessoa.

Eu estou aqui para lutar e não apenas por mim.

E você, está aqui para quê?

Kissu,

Kuma.

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(tinham muitas imagens legais, foi difícil escolher só uma…)

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Quando o estuprador é toda uma sociedade

Devo admitir que o recente caso de estupro coletivo da menina de 16 anos mexeu comigo. Mexeu seriamente. Não apenas por ser um episódio horrível (mais um dentre tantos, mas não menos importante) na história misógina e machista de nosso país. Não apenas pela tão comum culpabilização da vítima. Ambos são pontos de extrema importância e a reflexão sobre eles é sempre relevante. Mas, somando-se a eles, minha própria experiência pesou sobre mim.

Não, eu nunca fui estuprada.

Mas poderia.

Eu perdi a conta de quantos textos, quantas reflexões, quantas explicações, quantos tudo eu li sobre o assunto. Perdi a conta de quantos comentários misóginos e enojadores eu vi. E a empatia que senti por essa menina foi enorme. Admito que alguns textos quase me fizeram chorar. Porque, em menor escala e intensidade, eu senti na pele como é ser vítima do patriarcado.  Como é ter seu corpo visto e tocado como propriedade por qualquer um. Eu não estava inconsciente em nenhum momento, o que é bom e ruim ao mesmo tempo.

E é por isso que luto. Para que os fantasmas que me perseguem não persigam mais ninguém. Para que ninguém tenha de passar pelas situações por que milhares de mulheres passam todos os dias na nossa atual sociedade. Para que as minhas noites mal dormidas não aconteçam com mais ninguém. Nenhuma de nós merece o peso que é ser mulher. O peso de ter seus direitos postos em cheque na primeira oportunidade.

Não me entendam mal. Eu acho que ser mulher é algo fantástico. Não melhor que ser homem (afinal, eu não poderia nem comparar, nunca fui homem), mas mesmo assim sensacional. Porque nós resistimos, nós lutamos. Nós temos uma força descomunal para fazer tudo aquilo que quisermos. A sociedade não nos passa a mão na cabeça e diz “vai lá ser o que você quiser, conquistar o mundo”. Não. Ela nos joga bonecas e casinhas. Rosa e flores. Depois nos joga diante dos homens e diz que devemos satisfazê-los.

E nós levantamos cada vez mais a cabeça e dizemos que não. Que só vamos fazer o que quer que seja se quisermos, assim como é para eles.

Mas voltando ao assunto principal, voltando ao motivo que me levou a escrever esse texto. Uma garota de 16 anos foi estuprada por, pelo menos, 30 homens. Vi fontes dizendo que foram 30, outras dizendo que foram 33. Vi fontes dizendo que ela se drogava, que o cara que chamou os outros era ex-namorado dela, que ela morava na favela, que ela fazia parte de gangue, que ela aceitou previamente o ato com os 30, que ela trocou o sexo pela droga por ser viciada.

E a pergunta que fica é: tudo isso importa?

Não. Como foi extensamente divulgado (eu não vi os vídeos e não desejo ver, mas li a respeito e sei seu conteúdo), ela estava inconsciente na hora. Portanto, ela estava vulnerável e incapaz de consentir e resistir. Isso é, por lei, crime (Lei Nº 12.015, Capítulo V, Artigo 217-A, Parágrafo 1). Mais do que isso, resultaram lesões físicas no corpo dela.

Como se nada disso bastasse, ela foi incansavelmente exposta, julgada e humilhada por uma sociedade que não aceita a palavra de uma vítima de estupro. Qualquer mínimo detalhe, não importa quão no passado ele esteja, será usado para descreditar a vítima. Os estupradores inventarão mil histórias, se precisarem, para se passarem por inocentes. E foi exatamente isso o que aconteceu. Ela era mãe solteira. Ela teve filho aos 13 anos. Ela era usuária de drogas. O cara possivelmente era ex-namorado (agora não me lembro se isso foi descreditado ou não, mas sei que apareceu por aí).

Para quem tem dificuldade de se por no lugar do outro, pare e pense: o que usariam contra você se o estupro coletivo tivesse acontecido com você?

Para mim, poderia ser estar de shorts ou saia no calor. Andar na rua sozinha de noite. Pegar o transporte público (e não sei se seria pior ou melhor ser hora do rush ou não) sozinha, de saia, de shorts. Às vezes, estar de vestido. Às vezes, usar uma blusa um pouco mais decotada.

Mas às vezes tudo de que eles precisam é que você esteja ali.

Hora errada, lugar errado.

Mas às vezes tudo de que eles precisam é de que você exista.

Nascer mulher.

Mas às vezes tudo de que eles precisam é de que você seja educada.

Dar atenção.

Mas às vezes tudo de que eles precisam é de que você…

Seja você. Porque no final não importa. Se você responder, levantar a cabeça, se impor, falar mais alto, resistir, você está pedindo, por que onde já se viu mulher agir assim? Não saber se por em seu lugar. Se você não resistir, não responder, for submissa, você não pode reclamar, esse é o seu lugar, é isso que você merece.

Ser mulher (cis, trans, o que for – mas sim, reconheço que cada grupo dentro dessa grande categoria que é “ser mulher” enfrenta dificuldades diferentes) é lutar todo dia. Contra você, contra os outros, contra o mundo. É viver em um mundo feito de homens para homens e querer declarar seu espaço, sua conquista. Mais que isso, conseguir levantar todo dia e enfrentar os mesmos desafios repetidamente. Porque, no final do dia, é isso que somos. Guerreiras.

Vencedoras.

Muitas de nós caíram, foram quebradas, destruídas e muitas vezes pulverizadas pelo patriarcado. Muitas de nós, e eu me incluo nesse grupo, têm medo de sair na rua todo dia, independentemente de onde esteja. Eu estou no Canadá nesse exato momento e, mesmo aqui sendo um lugar com um nível de respeito muito maior, esse medo ainda me persegue. Porque mesmo aqui o machismo está presente. Em menor intensidade, sim, mas ainda está presente. Nenhum lugar está imune a essa cultura, apesar de alguns países estarem mais avançados nesse aspecto (a Islândia é o país mais feminista do mundo, a Suécia enriqueceu ao promover a igualdade de gênero).

Para vocês terem uma ideia, no Índice Global de Disparidade de Gênero (em que a primeira posição corresponde a uma maior igualdade de gêneros), o Canadá aparece em 30. O Brasil está em 85. Sim, eu sei que a história entre os países é diferente, que o tempo de existência de cada país varia. Mas isso só é mais motivo para lutar. Para fazer a nossa história ser mais feminista. Nós podemos olhar para a história de países mais antigos e aprender com isso. Nós podemos olhar para a nossa história e aprender com isso. E juntar todo esse aprendizado para construir um país melhor.

Um país em que uma garota de 16 anos não seja estuprada por dezenas de homens e as pessoas se preocupem mais em achar motivos para jogar a culpa em cima dela do que em dar a devida justiça a ela. Esses 30 precisam ser julgados (deixemos a discussão sobre a eficiência do sistema carcerário para outro dia. Eu acredito muito mais em políticas de reabilitação e socialização – nem sei se o termo usado é esse, mas vocês entenderam a ideia). E a garota precisa parar de ser exposta por pessoas que não conseguem parar para pensar por 5 segundos sobre o que estão fazendo. Ela merece ser deixada em paz, poder se recuperar, poder continuar com a vida dela sem o julgamento de toda uma sociedade.

Ela vai precisar lutar contra os próprios demônios mais do que nunca agora. E é justamente por isso que todo o apoio é necessário.

Acredito ter dito tudo que se fazia necessário nesse momento. Essa é uma discussão longa, uma batalha de mais de uma vida. Nosso caminho é longo, escuro e tortuoso, mas eu acredito que conseguiremos chegar lá. Não, eu não acredito que viverei para ver os frutos dessa luta. Mas isso não me impede de lutar. Eu não luto apenas por mim. Eu luto por todas as mulheres. E eu sei que não estou sozinha. Mais do que isso, sei que, um dia, o mundo será um lugar bem mais agradável de se viver.

Kissu,

Kuma.

P.S.: a intenção, originalmente, era fazer um texto que tratava mais de minhas experiências e como esse caso reforçou minha necessidade de lutar. Mas, escrevendo, me pareceu mais adequado não me envolver demais no texto. Um dia, quem sabe, eu escreva sobre as coisas que me aconteceram. Se isso acontecer, estejam preparados para um texto (bem) indigesto.

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Considerações da madrugada

Porque eu to pegando fogo hoje (que?)

Estava revendo o blog (deu saudades ♥) e algumas coisas acabaram inevitavelmente me ocorrendo. Decidi listá-las por pura falta do que fazer (afinal, dormir é para os fracos – só que não)

  1. Eu era absurdamente menos amável durante o colégio (quando o blog começou)
  2. Por algum motivo, eu sinto que as pessoas gostavam mais de mim? Ou, talvez seja melhor dizer, mais pessoas pareciam gostar de mim (mas, aparentemente, é normal ter menos amigos aos 30 anoso que me consola mesmo eu ainda não tendo 30)
  3. Eu não consigo ler postagens antigas sem uma voz infantil. Sério. Eu imagino essa mini versão de mim (não que eu tenha crescido ou mudado alguma coisa nos últimos anos) falando com aquela cara emburrada e tom de criança e não consigo não achar graça.
  4. Eu ainda tinha muita coisa em mim pra desconstruir, apesar de que já estava vendo alguma luz no fim do túnel. Porque, sabem como é, adolescência é um período sombrio, recheado de intolerâncias e briguinhas idiotas. É aquele misto de ser criança e ser adulto (o que, pelo menos pra mim, ainda se mantém, mas – espero – pesando mais pro adulto que pra criança agora). Mas claro que a gente se acha o dono do universo com 15/16 anos. Quem nunca, né?
  5. Eu me tornei uma pessoa muito mais madura em alguns aspectos, mas em outros as coisas continuam iguais. É mais fácil fazer auto-crítica, por exemplo, e não me sentir péssima depois. Em vez disso, em geral, eu vejo uma possibilidade de crescimento. Mas, por outro lado, eu continuo sendo teimosa e mão de vaca em algumas situações. Bônus: aprendi a cozinhar, quem diria (um dia ia precisar, mas tudo bem)
  6. Eu era “aparentemente” mais feliz. Aparentemente porque eu não me definia (que eu me lembre) como uma pessoa feliz. Tinha (ainda tenho, na verdade) amigas muito mais animadas, ou seja, aparentemente muito mais felizes. Mas um dia você se toca de que a pessoa parecer feliz não significa que ela esteja feliz.
  7. Apesar de todos os baixos que rolaram até então, de tudo e todos de que abri mão, sinto uma gratidão muito maior agora pela minha vida. Muito maior mesmo. Aos poucos, a gente aprende a deixar ir aquilo que nos faz mal. Sejam coisas, situações ou pessoas. E aprende a lidar com isso, a aceitar. Isso torna a vida ridiculamente mais leve.
  8. Eu me tornei muito mais envolvida politicamente do que jamais imaginei que seria (mas não, não farei um texto sobre a atual situação do Brasil, porque tem muita coisa acontecendo, tem muita informação por aí, tem muito ódio e muita intolerância se espalhando entre as pessoas, consumindo tudo que encontram pela frente. Eu não quero jogar mais lenha na fogueira)
  9. Apesar de todos os textos falando sobre a liberdade da mulher (e coisas do gênero), eu percebi que me tornei muito mais esclarecida em relação ao feminismo nos últimos dois anos. Antes, eu pensava muito e praticamente apenas na questão de vestuário, provavelmente por ser a mais óbvia. Não que eu tenha deixado esse assunto de lado, mas hoje consigo ver muito mais facilmente os outros tipos de violência que existem. E, acho, sou mais capaz de tratar sobre o assunto. Há um embasamento maior, uma paciência maior para conversas (mas não teste limites)
  10. Descobri (ou melhor, apesar de já saber antes, a ficha meio que só caiu agora) que, só porque uma pessoa está na sua vida há anos e fala com você com frequência, isso não significa que você e ela tenham uma relação verdadeira de amizade. O tempo mostra muita coisa, inclusive o que é realmente uma amizade. Se você deixou de se sentir confortável falando com alguém (vulgo, se há indiferença ou desconforto ao falar com ela), talvez seja hora de repensar a amizade. E uma pessoa com quem você tem menos contato pode ser aquela com quem você acaba se abrindo mais facilmente, pode ser aquela que te é verdadeiramente amiga.
  11. Meu relógio biológico é completamente maluco. Não apenas noturno, mas maluquinho mesmo. Prefiro ir dormir de madrugada, mas sou tão capaz de dormir o dia inteiro quanto de dormir umas 8-9 horas. Virar a noite não é tão um desafio também. E, às vezes (por que não?), dormir umas 4-5 horas me é o bastante (mas esse caso é bem mais raro e só dá certo se eu acordar naturalmente).
  12. Escrever sempre me aliviou o peito, a cabeça. Eu sempre gostei, mas não praticava tinha muito tempo. Eu devia voltar a fazê-lo.

 

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Esse post não é exatamente útil (não que haja muita utilidade nesse blog, convenhamos), mas eu senti que seria bom pra mim escrevê-lo. Assim como a maioria dos meus textos são, esse é mais um desabafo. É bom ter um lugar em que você pode postar as suas coisas, seus pensamentos. Quem diria que eu acharia que escrever num blog podia ser (um tanto) terapêutico?

Kissu,

Kuma.

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Contracepção masculina

Nota de cabeçalho: esse texto foi originalmente publicado no Facebook e adaptado para o blog. Baseado na matéria da Super Interessante (“Anticoncepcional masculino pode ser lançado em 2018“) sobre o assunto. Não, eu não procurei outras fontes, mas deveria. O foco aqui não é a matéria em si, mas alguns pontos específicos. Então vamos ao que interessa.

Lendo os comentários (na postagem original no Facebook), apareceram perguntas/frases que faço questão de comentar (mas tenho fé que as pessoas já sabem ou pelo menos imaginam que seja assim)

1. Os espermatozoides continuam sendo normalmente produzidos, o gel não afeta isso. Comparar com o anticoncepcional feminino é idiota pelo simples motivo que eles funcionam de formas diferentes. Seria melhor comparar com a camisinha (ainda, uma comparação infeliz, mas mais aceitável porque ambos funcionam como barreiras físicas)

2. Os espermatozoides barrados morrem em questão de dias (2 dias, se bem me lembro), mas eles não ficam lá pra sempre. O corpo absorve as células mortas e reaproveita o que der. O que não der é eliminado como qualquer outra coisa que seu corpo joga fora. Então relaxa que não vai “entupir” nada.

3.
É uma injeção, mas não significa que vai doer. Alguns fatores influenciam nisso. Um deles é o tamanho da agulha. Quanto mais fina, menos dor (consideremos aqui que a agulha vai ser sempre nova, porque senão é puramente idiota). Os caras não vão inventar de por um negócio de alto calibre pra dar uma injeção no pênis, porque senão ninguém vai querer. Eles vão (espera-se, pelo menos) procurar o menor calibre possível. Outra coisa que influencia é onde a injeção é aplicada. Se ela tiver de “competir por espaço” (como diz a física, dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço), pode doer. Como é aplicada no canal, ele vai estar vazio (bom, pode ter ar, resto de sêmen, mas nada que não seja facilmente deslocado), então a injeção pode entrar facilmente e ocupar o lugar que precisar. Outro fator importante é a composição. Algumas injeções doem porque o conteúdo solidifica (no sentido de formar pedras, cristais) quando entra no organismo e isso pode acontecer por uma série de razões. Como forma um gel, diria que é seguro riscar isso da lista. Até porque não faria nenhuma porra de sentido meter um cristal no pau dos caras e esperar que as pessoas aceitem e fiquem felizes.

Além dessas considerações, vi gente falando sobre feministas que não gostaram da iniciativa porque seria “jogar na mão dos homens a decisão de ter ou não filhos” (ou algo assim). Se você pensa assim, eu sinto muito. O que eu acho é que as pessoas são livres pra escolherem e que é uma ótima iniciativa, porque faz com que a responsabilidade deixe de ser só da mulher. Além disso, se um casal quer ter filhos, a pessoa dona do útero hoje para de tomar o anticoncepcional pra poder engravidar. É algo que as pessoas decidem juntas (não estou considerando aqui casos de homem que abandona a mulher porque ela engravidou. Já chego nessa parte). Com essa contracepção nova nada muda. Os dois ainda conversam, ainda decidem juntos se querem ou não e aí é só interromper a contracepção. Sem pílula pra impedir a ovulação e com bicarbonato pra dissolver o gel. Fim do problema.

Sobre casos de gravidez indesejada em que a mulher é abandonada: seria ideal (e eu sei quão utópico é esperar que isso realmente seja assim) se o homem fizesse esse procedimento, com ou sem a influência da mulher. No entanto, tenho pra mim que gente que abandona a mulher por engravidar é gente babaca e muito provavelmente acha que a responsabilidade disso cabe só a ela. Então, claro, ele não vai “tomar injeção no pau, tá louca?!”.

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A sujeira debaixo do tapete

Devo admitir que, enquanto pensava no que escrever, várias ideias me vieram e eu não sabia mais como começar o texto. E sim, eu sei que já tratei desse tema antes, mas parece que nunca é demais na sociedade em que vivemos, em que as pessoas, independentemente do grau de educação que tenham ou de onde morem, parecem teimar em entender algo que devia ser, convenhamos, óbvio. Mas vamos do começo.

Por que esse título?

Porque o tema aqui tem um passado tão profundo e uma existência que tantos parecem tentar esconder que me pareceu uma comparação adequada. É como aquela poeirinha que não queremos que a visita veja e jogamos debaixo do tapete. É pouco, quem vai perceber? Mas ela está lá e, com o tempo, aumenta. Quanto mais tentamos disfarçar a situação sempre jogando para baixo do tapete, mais a pioramos e, um dia, uma limpeza vai se fazer necessária. Um dia, aquela sujeira vai ter que ser realmente removida.

Mas do que diabos se trata o texto afinal?

Não, não é sobre a pesquisa do IPEA. Não exclusivamente. É sobre um tema que todos devíamos ter sempre em mente, porque é algo sério e extremamente danoso. O abuso. Não importa se é com a mulher, com o homem, com um ateu ou um religioso, com um hetero, bis, trans, homossexual. Ou mesmo alguém que se considere assexuado. Os de gênero fluido, por que não? É sobre todos nós, culpados, cúmplices e vítimas.

Quantos já não ouviram que “fulana foi estuprada (e aqui darei os exemplos com mulheres porque elas são as maiores vítimas da história até onde eu sei) porque estava usando uma saia muito curta” ou que “ela estava pedindo vestida daquele jeito”? Ou ainda que “mulher devia saber se comportar”, que “devia por os peitos dentro da roupa e procurar um homem de verdade” ou que “não devia andar por aí vestida assim (e pense em qualquer roupa usada para justificar a história) sabendo como as coisas estão”?

Afinal, por que a culpa recai sobre a mulher?

Li hoje algo que me fez parar para pensar em algo que nunca tinha pensado. Quando se diz que a culpa é da mulher por ela “não saber se comportar”, ao mesmo tempo diz-se que o homem (o que estuprou, o que estupra, o que estuprará ou mesmo os que não estupram, mas concordam com a mentalidade) não é nada mais que um animal irracional, não é nada mais que instinto, um bicho que não evoluiu. Ofende-se, portanto, tanto homens quanto mulheres. Você, leitor, gosta da ideia de ser retratado como alguém que não sabe se controlar quando vê uma mulher na rua?

Eu não gostaria.

Mas a culpa nunca é da vítima. Quem, em sã consciência, iria querer sofrer tamanha humilhação? Quem iria querer ser violada dessa forma? Sofrer um trauma desse tamanho e passar a viver com medo de andar entre as pessoas, porque nunca se sabe quem irá ou não submetê-la novamente a algo assim. Imagine o temor de andar na rua olhando para todos os lados como se todos fossem “o inimigo”. Imagine o pesadelo que a vida da pessoa passa a ser, o terror que se repete incansavelmente na mente de quem passa por isso.

O abuso deve ser denunciado e combatido. Esteja usando uma burca ou uma saia curtinha, mulher nenhuma merece o desrespeito, a invasão a seu corpo. Mulher nenhuma nem pessoa nenhuma, porque homens também podem ser vítimas de estupro. Acho simplesmente ultrajante quando acham que a orientação sexual de uma pessoa pode ser “corrigida” (quê? Como raio se corrige algo que não está errado?) com um ato sexual forçado. Tão ultrajante – se não for mais porque são duas ideias absurdas e machistas ao extremo juntas – quanto fazer qualquer um de vítima de uma prática tão hedionda e, infelizmente, tão comum.

Não acho que esse seja um texto que precise se estender demais. Afinal, quantas coisas já não foram ditas sobre esse tema? Quantas discussões já não se passaram? Quantos já não tiveram que aprender na própria pele o que esse abuso significa? Mas, mesmo com tanta dor, com tanto sofrimento, com tanta incredulidade, as pessoas continuam se achando no direito de culpar a vítima pelo que aconteceu. A culpa nunca, em hipótese alguma, é da vítima.

Para terminar, deixo vocês com um gráfico bastante didático que achei simplesmente genial, apesar de representar algo que é ridículo de tão óbvio.

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Kissu,

Kuma.

P.S.: a ideia original era bem maior, talvez até bem mais ampla. Mas eu me sinto tão cansada de falar sobre isso sem ter resultados que achei melhor deixar assim mesmo. O fato de ter outro texto que aborda esse mesmo assunto ajudou, porque eu imaginei que ficaria muito repetitivo se me estendesse mais aqui. De qualquer forma, espero que tenha sido do agrado da maioria e, para aqueles que não foram, saibam que eu não me arrependo. Afinal, se não incomodasse, não mudaria nada, não é?

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“Como eu fico?”

Confesso que eu não queria escrever nada, especialmente sobre este assunto, porque eu acho que já me desgastei muito com ele. Mas não deu pra segurar. O desabafo não foi grande o suficiente ainda. Aliás, esta é outra confissão. Este texto é um desabafo. Um verdadeiro desabafo. Porque babaquice alheia me cansa. Tudo bem, não dá para entender nada ainda. Então vamos apelar para a didática (que eu não tenho muita, mas tentemos aqui nos fazer entender).

Pense em uma associação. Uma hipotética, claro. Ela se chama, por falta de criatividade, Clube da Luluzinha (CL). O CL tem uma parte responsável por organizar reuniões, debates, assembleias, esse tipo de coisa. Só que, para que tudo o que essa parte organiza funcione direitinho, é preciso haver algo chamado “quórum”. Eu digo o que é o quórum se você não sabe. “Quórum” é a quantidade mínima de pessoas que devem estar presentes na reunião/assembleia/discussões para que se tenha validade. Até onde eu sei, equivale a 10% (pouco, eu sei).

Muito bem, foi convocada uma assembleia geral para o CL. Para facilitar o cálculo, vamos supor que o CL tenha 100 membros. Logo, 10% são 10 pessoas. O assunto da assembleia é pertinente e espera-se que muito mais que 10 pessoas apareçam. Espera-se que a maioria (definida como 50%+1, o que, no caso, são 51 pessoas) apareça. Especialmente porque a assembleia foi marcada com a devida antecedência e teve a devida divulgação, o que permite que as pessoas se planejem para irem à assembleia.

Chegado o dia marcado e dado o tempo limite para se atingir o quórum, contam-se as pessoas. Surpreendentemente, os presentes totalizam 10% do CL. Qual a representatividade das opiniões expostas no CL então? Ora, teoricamente, toda, pois se teve quórum, foi uma assembleia perfeitamente válida. Assim, o resultado da assembleia, depois de diversas discussões, é divulgado.

Metade do CL se posiciona contra a decisão.

“Mas não havia representatividade?”

Teoricamente? Sim. Eu não acho que 10% seja um bom valor. Especialmente quando se tem muito mais gente compondo o grupo para o qual a assembleia foi convocada. Mas voltemos. Com tantos contra, fica a pergunta: por quê? Pelo simples fato de que as pessoas não entenderam (ou não entendem ainda) o que a presença na assembleia significava. Presenciar o debate não é aprovar ou rejeitar algo. Ter a presença ali não é votar contra ou a favor. Ao contrário. Muito ao contrário. Estar ali é se dar a oportunidade de falar, é se representar, é poder expor a própria opinião e ouvir a dos outros.

É chegar a um resultado verdadeiramente representativo.

Mas, para os integrantes do CL, o ato de não ir à assembleia (na ridícula esperança de que não houvesse quórum) significava que não havia concordância com o tema. Que se era contra o que estava sendo proposto. Assim, com 90% ausente em sua falsa representação de discordância, deu-se a assembleia e discutiu-se o tema proposto. No fim, chegou-se a uma decisão que foi divulgada oficialmente aos 100 integrantes do CL.

Uma decisão que foi sabiamente acatada por uns e profundamente criticada por outros. Outros que não tinham (ou fingiam não ter e eu, particularmente, aposto mais nesta última opção) consciência de que não ir à assembleia significava concordar com o que fosse decidido por quem foi e discutiu. Por quem votou. A decisão da maioria é referente aos presentes na assembleia. Se 10% estavam lá, o 50%+1 é referente a eles (no caso, 6 pessoas) e não ao grupo todo (as 51 pessoas citadas anteriormente).

Enquanto as pessoas não forem capazes de entender isso, o problema da falta de representatividade desses 10% continuará a existir. Diversas desculpas para o não comparecimento aparecerão e cada vez mais a união do grupo será reduzida devido a decisões que vão contra o que a maioria dos integrantes quer. Mas o que fazer quando estes mesmos integrantes que reclamam das decisões não comparecem aos debates em que elas são tomadas?

O ponto de tudo isso é, para variar, a triste realidade em que vivemos. Movimentos populares são cada vez mais frequentes e visíveis e existem não só nas ruas, mas também dentro de, por exemplo, universidades. E o que eu vi ontem, de pessoas que vejo com frequência (algumas com uma frequência indesejada, mas não importa agora), entristeceu-me de tal forma que não pude me calar.

Manifestei-me para eles, para amigos que não estavam envolvidos e, agora, para você que se deu o trabalho de ler até aqui (aliás, muito obrigada e, por favor, leia até o fim). Nessa manifestação minha, comecei a tremer. Não de frio (porque estava realmente frio, mas providências foram tomadas), mas de raiva. Raiva da mesquinharia e do egoísmo de muitos estudantes. Colegas, amigos. A dificuldade (medo, talvez) em deixar de olhar para o próprio umbigo por um instante.

Abrir a cabeça, pensar no próximo.

Pessoas que, assim como eu, sofreram e ainda sofrem com a má-estruturação do curso. Pessoas que sabem que outros passarão por isso ainda, que sabem que outros estão passando. Pessoas que, mesmo assim, se preocupam mais consigo mesmas. Que não conseguem olhar adiante se não for para se ver com um diploma na mão (coisa que hoje em dia é comprável) e um trabalho. Eu aposto que elas terão um trabalho exaustivo, mas não farão nada a respeito.

Fazer exige sair da zona de conforto.

Elas agem como se nada fosse com elas. Até, claro, a coisa apertar. Até “a água bater na bunda”, como vi muitos amigos (que foram na assembleia e/ou concordaram com o resultado) usarem. Mesmo as que não concordavam, mas foram. De fato, muitas pessoas só agem quando se sentem encurraladas. Ou melhor, reclamam. Porque é mais fácil reclamar e dar argumentos estupidamente babacas. Reclamar, em especial e sem qualquer moral, da falta de representatividade. Para finalizar, deixo o que disse aos colegas que só reclamaram, para os primeiros a quem me manifestei.

Vocês não se manifestaram quando foi dada a chance, o que é a mesma coisa que dizer que acatam as decisões de quem foi. Gente, não ter quórum significa adiar o debate. Debate. É pra isso que serve a assembleia. Vocês estão reclamando da representatividade, mas não quiseram expor seus pontos de vista. Afinal, reclamar da decisão é mais fácil. Reclamar com e dos poucos que se deram ao trabalho de fazer alguma coisa é muito mais confortável, eu sei. Admito que não fui nas assembleias, mas não me incomodo com a greve. Minha consciência está limpa porque eu sei que não ir equivale a concordar com a decisão tomada, que não ir significa não ter a chance de me expressar. Pensem no que a gente sofreu. Pensem na grade atolada de coisas, nas aulas corridas e intermináveis. Nos quase 40 créditos (em um único semestre). No tempo que nos é dado pra fazer tudo que nos é exigido. Nas noites de sono perdidas, nos ataque de estresse. Pensem em quem vai passar por tudo isso. Eles merecem? Nós merecemos? Os horários apertados, a galera que leva mais que horas pra ir pra casa, o estresse acumulado pelo dia inteiro sobrecarregado, o não conseguir estudar&dormir porque acham que alunos são máquinas, a imposição de “superiores” desde as coisas mais simples e babacas, a falta de condições… É com isso que vocês querem continuar? A maior preocupação de vocês, de verdade, é uma avaliação falha, que te dá um mero número em retorno? Ou a preocupação de vocês é com o que vão pensar? “Nossa, greve, esse povo é tudo vagabundo mesmo”. É isso que vocês acham que a greve significa? É disso que vocês estão com medo? Por que a maior preocupação de vocês é com a prova? Por que reclamar de algo com que vocês mesmos colaboraram (e aqui falo da falta de representatividade de que tantos falam)? Se não existe o 50%+1 é porque não houve a boa vontade de completarem o 50%+1. Se querem representatividade, façam-se presentes. Coloquem a opinião de vocês na próxima assembleia. Representem aquilo que vocês querem. Concordo que não é maioria. Aliás, é um número extremamente baixo considerando o tanto de gente que tem na nossa faculdade. Mas desse mesmo tanto, foi o pessoal que conseguiu ir, independentemente do motivo. (…) Somos uma comunidade em que 90% prefere reclamar das decisões depois em vez de participar dos debates em que elas são tomadas.

A questão que fica no fim de tudo isso é… Afinal, como nós ficamos?

Kissu,

Kuma.

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Minhas pernas livres!

Pra começar, quero deixar bem claro que a ideia inicial surgiu por causa do USP de Saia! (para os que não sabem do que se trata, tudo surgiu com isso e levou vários alunos a protestarem, de forma que no dia 16/05/2013 ficou combinado o evento USP de Saia!, em que todos iriam de saia, um sinal de apoio à liberdade de expressão e contra o preconceito). Afinal, qual é o problema de vestir uma saia? Seja homem ou mulher. Aliás, levante a mão quem sabia que a saia é, originalmente, uma vestimenta masculina.

Mas o que quero tratar não é o uso da saia em si, mas a liberdade de expressão das pessoas em se tratando do que vestir e do que isso representa. Assim como se tem a liberdade de se fazer o que quiser com o próprio cabelo (mesmo que algumas coisas fiquem, para alguns ou para a maioria, feias), mesmo com o próprio corpo (piercing, tatuagem, mesmo a cirurgia plástica ou qualquer outra coisa), por que não podemos nos vestir como quisermos?

“Mas as pessoas precisam se valorizar. As mulheres, especialmente, precisam se valorizar”.

Ok, o que é “se valorizar”? Cobrir as pernas, a bunda, o peito e andar como freira na rua? Uma pessoa pode se dar valor e andar com roupas provocantes, por que não? Há quem goste, há quem não goste. De que forma isso nos dá o direito de julgar o que o outro escolheu para usar? Claro, acho que há um limite e ele se chama “pudor”, não “valorização”. Afinal, por mais que você queira expor o seu corpo, ninguém é obrigado a ver, por exemplo, seus mamilos. Quer usar decote, use. Mas entenda que algumas pessoas olharão feio. Pode ser por preconceito (provavelmente será) ou porque há um desconforto em ver tanto do corpo de um estranho. Digo, algumas coisas devem ser vistas apenas em situações específicas, não é?

De qualquer forma, imagine uma pessoa usar um short que mais pareça um cinto de tão curto e uma que use uma saia que vá até os tornozelos. Qual das duas está dando a permissão para quem quer que seja de passar a mão no corpo dela ou de chamá-la de qualquer nome que seja? Aposto que você pensou na primeira. Afinal, se ela está usando roupas assim, ela quer que as pessoas façam algo do gênero, certo?

Errado.

Cada um tem seus motivos, mas nada, absolutamente nada, justifica abusar de uma pessoa só por causa do jeito dela de se vestir. É extremamente desconfortável andar na rua e de repente sentir alguém pegando na sua bunda. Dependendo do grau de intimidade, a gente não deixa nem os amigos fazerem isso. Que dirá gostar quando um estranho o faz! Se a simples invasão do espaço pessoal pode gerar desconforto e é errado, imagine você ir a uma festa/balada/o que for e ter as roupas arrancadas.

Sim, estou falando das mulheres no baile funk que tiveram as roupas arrancadas.

Elas não mereciam aquilo. A menos que a própria pessoa queira se despir para a outra ou então peça para ter as roupas tiradas, nada justifica despir outra pessoa. Muito menos usando da força. Imagine a humilhação que isso traz. E o que você veste não determina o que você quer que as pessoas façam com você. O que você veste indica apenas o que você se sente confortável usando.

Geralmente (até onde eu sei), as pessoas que se vestem assim querem atenção. Olhares, assobios. Talvez até se sintam bem com as pessoas gritando que elas são gostosas e afins. Mas de jeito algum significa “venha me tocar”, muito menos passar disso.

O que nos leva a um assunto mais sério.

Estupro.

Eu sei, o assunto ta ficando pesado e parece que eu estou fugindo do tema. Vocês vão perceber que não (eu espero).

A culpa não é, nunca, da vítima. Não é porque ela se veste de um jeito x, porque ela não diz que “não” ou o que quer que seja que ela está pedindo para ter uma relação sexual não consensual.  Quantas pessoas não dizem para os amigos, para os filhos “não use uma roupa assim ou assado porque você será estuprado (a)”? Quantas não ouvem isso? Quantas vezes não ouvimos “ah, fulano (a) estava usando uma roupa chamativa, quis que acontecesse”. Meu deus! Ninguém quer passar pelo trauma de ser abusado, de ter o corpo invadido, geralmente com violência, com ameaça, com abuso (e não me refiro só ao físico).

Uma roupa não diz “me invada”, não diz “me estupre”. Uma saia curta não estupra (vi essa frase em algum lugar, mas não salvei a referência. Se alguém tiver, agradeço). E é por isso que eu não fugi do assunto. Dizer que uma pessoa pediu para ser abusada, pior ainda se disser que ela pediu para ser estuprada, por causa da roupa que ela decidiu usar é a mesma coisa que dizer “você não tem a liberdade de se vestir como quer”.

As pessoas dizem “não seja estuprada (o)” quando deveriam dizer “não estupre”. Porque é muito mais fácil culpar aquele que não se veste como a sociedade acha aceitável. E o que é se vestir aceitavelmente? Aliás, isso me lembra de um texto que eu li uma vez (pra quem quiser o link: http://www.feministacansada.com/post/47911591232)… Enfim, não vamos deixar o assunto mais pesado. Para encerrar, deixo apenas mais uma coisa, especialmente para aqueles que acham que a culpa é da vítima: http://projectunbreakable.tumblr.com/ (é algo pesado, mas lindo de se ver. Esteja preparado ao abrir o link).

E decidi chamar o texto de “Minhas pernas livres!” justamente por causa do lance da saia. Aliás, se o homem souber escolher, ele pode ficar realmente bonito! Porque, afinal, o corpo é de cada um e cada um tem o direito de se vestir como quiser.

Kissu,

Kuma.

P.S.: àqueles que se incomodaram com o ar pesado que o texto ganhou, devo dizer que não consigo separar muito as duas coisas. Para mim, falar da liberdade para se vestir como quiser está direta e profundamente relacionado com o abuso e tudo o mais. É a minha opinião.

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Equalização do diferencial

E mais de um ano depois, a gente decide reviver o blog. Bom, eu. Não sei nem se as outras meninas têm cabeça pra pensar sobre isso (mas falei com a Riyuu e ela pretende voltar também. Vamos torcer!). Eu não ando tendo, mas depois de me matar (ou quase isso) de estudar, eu pensei “Por que não?” e resolvi dar as caras (eeeee!). E decidi falar sobre algo que realmente me incomoda muitomuitomuitomuitomuitomuitomuitomuito. Muito. (e por um instante a palavra me pareceu escrita de uma forma muito errada, mas acho que é só porque faz tempo que eu não a uso. Será?)

Enfim, o tema de hoje.

Generalização.

É um negócio que me incomoda pra caraca. Estava pensando nisso quando passou o jornal e eu ouvi um “os corinthianos”. Ta, eu sei, geralmente quando falam de torcida causando são eles. Mas não significa que todos façam as besteiras, passam dos limites, são uns animais ou o que quer que você diga sobre eles. Mas tudo é “os corinthianos”, como se eles fossem uma massa única, com um único cérebro (acredite, não são). E fizessem tudo junto, tudo igual. Não que eu goste de corinthianos de uma forma geral. Gosto de pessoas. E, porque assim se quis, elas torcem pelo Corinthians.  Acontece. Isso não as torna menos gente em nenhum aspecto.

E não é só no futebol que isso acontece.

Quem nunca ouviu um “as mulheres”, “as crianças”/”os menores”, “os gays”, “os negros”, “os ricos”, “os pobres”, “os políticos” (eu sei, eu sei, a gente só vê corrupto por aí. Mas, acredite, no meio, existe algum político de verdade, bom, que faria a diferença), etc etc etc, seguido de alguma caracterização qualquer? Ou então “porque ______ é tudo igual”, “tinha que ser mulher” e coisas do gênero.

Tudo bem as pessoas quererem se expressar. Afinal, cada um pensa o que quer. E geralmente elas falam com pessoas que entendem o que se quer dizer. Mas, não raro, a generalização vem acompanhada de algo realmente problemático.

Preconceito.

Ora, quem não sabe que, em geral, os brancos, os magros, os homens se dão melhor em uma entrevista de emprego? Ou mesmo já dentro da empresa, numa promoção? Esses dias li algo que me deixou MUITO P***, mas muito MESMO.  Falava (a autora escutou em um emprego que teve e resolveu compartilhar com os leitores. O tema do texto dela era completamente diferente, mas a frase cabe aqui também) “mulheres não trabalham tão bem porque são muito emocionais e têm TPM”.

Sim, temos TPM. Sempre? Não. Isso afeta nossas vidas? Sim. Muito? Depende. Somos seres incapazes ou inferiores por causa disso? Nunca. Aliás, os homens deveriam agradecer por cada período desses, pois, provavelmente, é quando mais precisamos deles. Eu, pelo menos, fico muito mais carente e precisando muito mais de colo e carinho nessa época. Tudo bem, eu também fico chata. Mas é porque está uma verdadeira festa hormonal dentro do meu corpo. A maior parte das mulheres fica completamente diferente (ou quase isso) uma vez por mês. As pessoas que não entendem precisam se esforçar para entender.

Mas antes que eu comece a mudar muito de assunto, voltemos a falar sobre generalizações. Eu não acho que generalizar seja sempre errado. Às vezes, só conseguimos nos expressar direito com uma generalização. Acontece. Só acho que as pessoas, de uma forma geral, precisam tomar cuidado ao generalizarem as coisas. Especialmente quando a base é um exemplo ruim.

Por exemplo, lá fora, no exterior, dependendo do que a pessoa faça da vida, ao ter que trabalhar com um brasileiro, é preciso fazer um curso pra saber como lidar. Porque brasileiro sempre se atrasa, então os caras precisam aprender a lidar com atrasos de 30 minutos, se for o caso. Isso não significa que todo brasileiro se atrase. Alguns (eu, por exemplo) não suportam muito atraso. Quem me conhece sabe. Se eu não estou no ponto de encontro com quase meia hora de antecedência, alguma coisa está errada.

Ou então as pessoas que não têm mais o que fazer (até devem ter, na verdade) e ficam dando golpe nos outros. Recentemente vi duas matérias tratando sobre isso. E digo “duas matérias” no sentido de serem matérias sobre assuntos diferentes. O sujeito? Brasileiros.

E-bay tendo problemas com brasileiros que dão golpes nos vendedores.

Jogos online sendo palco para golpes de brasileiros.

Então, lá fora, além de nos verem como as pessoas que andam quase peladas e comendo banana por aí, ainda seremos “os golpistas, ladrões” em qualquer coisa que decidamos fazer. Sério isso? E as pessoas trabalhadoras e honestas, como ficam? Aqueles que precisam, por lazer ou necessidade, fazer compras online por que o que querem só existe no exterior? Ou aqueles que jogam apenas para se divertir ou fazer amigos, serão rechaçados só por que alguns desocupados preferem acabar com a diversão real do jogo?

Acho que eu só precisava desabafar mesmo. Sei lá, ultimamente ando meio indignada com a vida. Em vários aspectos. Um deles é o preconceito que surge, junto do desprezo, com algumas generalizações. E muitas vezes nem percebemos ou, se percebemos, deixamos passar. Já é algo tão comum e tão erroneamente banal no nosso dia-a-dia que passa batido. É isso.

Kissu,

Kuma.

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